2/25/2008

A fantástica estória...

A FANTÁSTICA ESTÓRIA DO LINGUÍSTA QUE PERDEU A LÍNGUA
André Raboni



De tão só que estando estive
Compus-me um guia da vida:
Com métrica, metas profissionais definidas.
Fiei-me o que cria interessante,
Para eliminar os meus hiatos.

Não são poucas as faltas:
Retalham-lhe em lacunas.
Chego a perder palavras
Nos cantos da minha boca
Em momentos de estáticos hiatos.

E, procuro-as assombrado
Por entre os cantos labirtínticos
De meu órgão de fala.
Grito desesperado por chamá-las:
“Palavras! Onde vós te escondestes?!”

E, não imagino como pronunciá-las,
As palavras...
Que se me brincam de esconde-esconde...
Calo-me de joelhos ante a letra.
Imensa letra (opressora e vil.).

Toco o medo de tocá-las;
De pronunciá-las;
D... diz...
Ê-... las
... Dizê-las.

Per...
Perco-...
Me, perco-me nelas.
Neles...
Nos med... desinteress...antes de me dizê-lo.

Como sê... Sê-lo.
Como se não me bastasse
O que não é gagueira,
Mas, sim, impossibilidade de dizê-lo;
Sê-lo.

Ser mais ainda impróprio sê-lo
Que dizê-lo!
Nem com formidável zelo
Serei capaz de sê-lo
Antes de...

Ah! Letras que me são cáries!
Que me são caras!
Por gratuitas e impossíveis!
Que para pescá-las
Careço de mágico fio-dental.

Pesco-as com uma irredutível paciência.
Fisgo-as com a calma de minha fantástica linha de pescar...
E, elas se deixam fisgar...
Relutantes, resignadas e contrariadas,
Em permitir-me enunciá-las.

Já não me escovo os dentes
Sem que me caiam na saliva
Minhas forjas de fontes tipográficas
De palavras residentes de gengivas!
Nadam em meu universo salival!

Relutam em vocábulos
Que se digladiam em minha língua,
Provocando-me feridas incuráveis,
Esgotando-me o poder imensurável
Do verbo pronunciável:

Desta guerra, ou se saí mudo, ou se não sai.

Eis que em um instante de profunda pescaria,
Para minha surpresa e assombro,
Avisto um U fornicando com um I...

O que me sairia dali?
Qual o efeito imediato deste ato?
Um verbo involuntário e pavoroso?

Em local impróprio,
Uma cena abjeta como esta,
Fornicam as letras por trás de meus dentes!

Mas, que guerra injusta!
O U se me revelou uma puta!
E o I vil jovem senil!

Eu em torpe labuta
À procura de palavras
Para me explicar, e o que vejo:

Letras a fornicar.

Desesperadoramente estava eu a discursar
No exato instante em que se me fugiram
Todas as palavras, as quais eu já havia conjurado,
E, abnegado ante uma turva e numerosa platéia de ouvintes,
Minha mudez provocou uma onda de silêncios ruidosos...

Eu já não cria no que via:
Uma imoralidade se fertilizava
Nas moitas de meus dentes.
E eu, perdido, não sabia para onde olhar:
Se para as devassas letras, ou para a cínica platéia.

Não me ocorreu outro gesto de emergência,
Senão tapar-me a boca com força brutal,
Prevendo o vocábulo que fatalmente
Iria advir daquele coito pecaminoso,
Cujas letras a gozar sorriam!

Zombeteiras, as letras se me descobriram
A olhá-las, boquiaberto e paralisado
Ante a vil imoralidade da cena em minha boca.
E a platéia, que esperava de mim uma palavra cabal.
E eu, coitado, balbuciava uma tentativa de explicação...

Mas, como fazer-me entender?
O que dizer diante de tal situação?
Eu gaguejava ridiculamente:
Ar... En... è... ôo...e...ao...eao...e-ar-ô-en...
A cada fonema minha face se contraía pavoroso!

A rostidade que se me brotava nos músculos da face
Era, provavelmente, a mais bisonha já produzida!
Qual rosto nenhum palestrante, decerto, havia expressado.
Se não me compreendia o verbo, a platéia,
Meu desespero certamente era refletido nas faces assombradas que avistava.

Brotaram-me lágrimas caudalosas nas faces.
Caí em prantos vomitando vocábulos pavorosos:
Bluerghht... Bluerghht... Bluuuuuerghht...
Vomitei silabas e fonemas até meu estômago secar a voz.

Quando acordei, estava nu...
Numa cama de hospital.
Uma enfermeira se prostrou em minha frente,
Com olhar ameaçador...

Algo havia de estranho em mim...
Em um primeiro momento,
Não soube o que era.
Como se me tivessem cingido um hiato.

Havia uma lacuna em minha boca.
Como se me faltasse um órgão.
Perguntei a enfermeira:
“Ghurr... ùônght.... mêérgh... Gmuhurmm?”

“Cortamos a sua língua, seu depravado!”
Enunciou impávida a enfermeira.
Meus olhos marejaram...
Minha alma foi tomada de profunda melancolia.

A melancolia se me tornou velozmente em ódio...
Queria gritar. Matar quem me arrancara a língua!
Meu coração disparado não conteve meu ímpeto,
Ameacei pular no pescoço da enfermeira.

Então, percebi-me atado pelas mãos e pés.
Minhas veias palpitavam de pavor.
Meus dedos, ávidos por esganar o mundo.
Minha consciência, enfim, foi apaziguada pela certeza da mudez.

Ser mudo era, agora, condição sine qua non:
Sem a qual não é possível viver:
Ou se vive, ou se fala.
Pela última vez, chorei.

O costume pelo silêncio me tomava parte essencial
Da existência.
Meus dias se tornaram sensivelmente mais e mais
Aprazíveis.
Aos poucos fui ponderando o dispêndio injustificável
De todos os gramáticos que trocam vida...
Por letras.

Como se tornaram desertos os meus dias!
Em minhas mãos, apenas uma pequena flauta antiga,
Com uma breve rachadura em um dos lados.

Porém, eu a admirava, receoso, apenas sob o olhar.
Jamais tencionei soprá-la – digo-o com justeza.
Minha dúvida paralisava-me contemplativo...
Digressões indizíveis habituaram meu cérebro a imagens impossíveis de se falar.
Eu flutuava nas texturas dessas imagens.
E elas se me viam e iam e eu ia e vinha nelas,
Nas imagens.

Já não me faziam falta as letras, os fonemas, os vocábulos...
Era tudo um hiato só.
Só me interessavam os semas. Digo mais:
Os bilhões de semas!
Minhas (minhas) imagens eram minhas fábricas de sememas.
E produziam tanto! Tantos semantemas!
Minhas digressões tornaram-se o mapa da minha existência.
Minha vida era caminhar por entre o deserto vocabular,
No qual, sem língua, tornou-se meu corpo.

Sim, era mágico o meu ir-por-entre a textura de meus semantemas!
E, quantos poemas cruzaram os caminhos infinitos de meus labirintos!
Quanta luz naquela falta desértica de temíveis aves morfêmicas!
E, quantas músicas (que eram uma) no silêncio daquela falta de compositores!
Como não me faziam falta as letras disciplinadas e disciplinadoras dos meus órgãos!

Em um vento caudaloso e lento que soprava leve atingindo meus olhos abertos meu corpo foi-se flutuando soberbo tocando modesta e involuntariamente as tangentes estruturas frondiformes da onda de areia que se me envolviam os membros qual folha de papel envolve letras e palavras e significados ocultos nas páginas infinitas de um livro de areia...

Tuuuuuuuuuuuuuiiiiiiiiiuuuuuuuuuu

Eis que tal vento me soprou a flauta de madeira esquecida ao canto de meu deserto.

Foi-me como um trovão ensurdecedor
Que me rasgou atroz os tímpanos adormecidos
Pelo tempo e pelo hábito de nada mais ouvir, nem falar.

Internaram-me em uma clínica
Supondo-me esquizofrênico.

Meu corpo estava anêmico
E, ouviu de uma voz cínica:

“Se não há língua, para quê dentes!?”

Era um homem alto e médico;
Da altura de um discurso cético.

Sem dentes, meu corpo sofrível
Ainda ousou relutante o indizível:

“ôohreeiaaaóôúûuuíîiíiaááhglhungc”

2/24/2008



O muro



Não fui eu que o construi,
no entanto, estático e arrogante,
ele dorme diante de mim.
E, imenso,
bloqueia a minha estrada.

Se há dois lados,
quem o construiu escolheu um só.
Eu não creio
que de lá não sintam saudades daqui,
que daqui não sintam desejo d’além...





Luciana Cavalcanti, 1998