8/24/2007

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Artes de guerras
(por luciana cavalcanti)










Dois meninos. E, à memória, reacendem brincadeiras de infância. Tempos idos, no entanto, presentes. Nunca fugidos... Porque amadurecer é tecer artes de guardar. Rememoro. Retenho-me. Parada, alguns minutos, na rua enlameada, sei que me posso re-ver ali: na disputa ingênua e boa de meninos que ainda se distraem jogando pedrinhas na água. Uma. Duas. Três... No terceiro lançamento, um deles gritou:

- Acertei a pedra grande, ilha do meio...!

Não acertara nada. Sua pedra apenas mergulhou na mesma lama, como antes, como as outras...
O outro menino, distraído na hora exata do suposto grande feito de seu companheiro, deteve-se. Havia reunido outras pedras pequenas nas mãos... Fitou o companheiro que, seguia adiante, orgulhoso do êxito rápido de seu bombardeio. Alvo atingido: a pedra-ilha.
Àquele que seguia, vitorioso, já não interessava se a pedrinha-míssel chegara mesmo ao alvo estratégico da batalha inesperada de caminho... Havia acreditado, de fato, em seu prodígio? Ou sabia já que as vitórias, às vezes, são feitas de convencer a quem quer que seja (inclusive, a nós mesmos, com o tempo...) a respeito do que não foi?

- Espeeeeeraa...!, bradou o outro, inconformado, talvez, de ser atirador de pedras menos habilidoso...

Uma. Duas. Três... Quatro?!? Não é possível...! Nenhuma pedra... O segundo combatente, inquieto, apertou os cabelos...
O pequeno soldado vitorioso já dobrava a esquina quando aquele que insistia em também coroar com bravura e eficiência a sua participação na batalha gritou:

- Acertei também!!! E foram duas!!! Você nem viu... Que tiro certeiro, cara!!!

Nenhuma. Duas tampouco... O segundo combatente também gozava apenas da vitória de propaganda. O outro parou, voltou-se durante uns instantes para trás. Entre desprezo e inveja, a sua voz soltou-se para selar fim-de-assunto e fim-de-guerra:

- Eu não estava mais brincando...

Vitorioso, agora. Mais forte e mais soldado, o segundo menino correu, alcançou o companheiro. Riam-se os dois. Duas célebres ações de guerra. Dois êxitos. Dois campeões de guerra de pedrinhas...
Pouco importava, eu sei, a um e a outro, se a pedra-ilha fora bombardeada eficazmente. Eram vencedores. Soldados com medalhas (invisíveis) de mérito. Riam-se.
Saíram do meu campo de visão... Deixaram, em mim, além da vontade reprimida de lançar pedras-mísseis também, um alvoroço de idéias por testemunhar, em brincadeira de rua, algo dos fios que tecem a História. O poder e vitória dos vencedores, como dos narradores, pousa na cegueira de quem ouve ou lê.
Vitória dita, festejada, é vitória vencida. Assim ficará guardado. Assim ficará sendo... E, depois, a memória trata de confundir o que foi com o que não foi. Assim é. Assim se fez... Brincadeira séria de re-inventar verdades. Os homens, meninos, nem querem aprender a perder suas guerras inventadas. Arma forte, a palavra se faz escudo e abrigo. A vitória vem... Certeira como a pedra que não-foi, a palavra atinge ilhas, espaços, vontades, memórias.
Dizer que são brincadeiras de rua... Acontecidos de andança infantil. O caminho (cansado) da escola até a casa é, afinal, pleno de convites às verdades de quintais (que já não são tantos...), verdades, sem conseqüência, de estar ao ar livre e distrair-se sem bytes. São meninos... Ora, o são! São homens que se fazem. Homens que se descobrem “inventores de verdades”.
Longe de discursos sobre éticas, as mentiras caminham, sem danos, ao nosso lado, na meninice. E intuo que, talvez, a última morada da sinceridade seja a voz dos donos de verdades únicas, absolutas...





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(...) Recife, Várzea do Capibaribe, 23 de Agosto de 2007 – 13 h 05 min.

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