3/11/2007

Periferia do ser (ou Elucubrações noturnas)

No edifício onde morava, sempre cumprimentava o porteiro da noite da mesma maneira: “Obrigado! Boa noite!”. Não trocávamos uma única palavra além disso. Depois de me abrir a porta de entrada, voltava-se para seu aparelho de televisão enquanto eu seguia sem demora em direção aos cinco lances de escada que amaldiçoava ter de subir logo após as efêmeras, porém importantes, farras da madrugada. Em frente à minha porta, travava uma batalha quase épica contra a fechadura; exausto depois da longa marcha dos setenta e cinco degraus. E, mesmo obtendo êxito na primeira empreitada, via-me de certa forma acuado pelo pequeno orifício da mão esquerda daquele monstro de madeira que se esquivava de todos meus ataques como se me estivesse proibindo a entrada em seu mais íntimo interior.

Quando finalmente consegui persuadi-lo, fingindo um movimento à direita, meu braço em toda sua potência, impulsionou-se tenaz em direção a fechadura. Iludi-me vitorioso por longos cinco segundos, até descobrir o dano causado à minha arma. A chave, que tão velozmente partira como uma seta solta ao arco, havia resvalado nas bordas da maçaneta e entortado a ponto de notar-se quebradiça. Frustrado então, sento-me recostado à minha antiga inimiga, como quem sela um pacto de curta pacificidade. Sem saber o que fazer, prostrado e escondido à margem de meus próprios pensamentos, observo minha sombra. É difícil pensar nela como sendo de toda imaterial, sem a menor e mais miserável partícula a lhe fazer parte.

Percebo-me formulando absurdas teorias sobre a composição de tais contornos sombrios. A idéia dessas formações supostamente privadas de luz serem extensões, ou melhor, projeções da alma, do espírito do ser, foi a que mais atentei. Como se houvesse um vestígio imperfeito da essência que envolve a existência... em meio a estas reflexões, comecei a adormecer envolto no frio corredor quando, de súbito, uma pancada de vento na janela acordou-me aos sobressaltos
e fez-me levantar da cama
para aliviar minha vontade de urinar,
apenas para voltar a dormir
sem lembrar do que acabo de sonhar...


Bernardo Coutinho
18.06.2005 / 12:12
25.06.2005 / 16:0

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