12/19/2006

Nem sempre quem olha a vida pela janela é espectador.

Pensei nisso agora

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Aquele menininho com cabelos lambidos de tão lisos se sentava na frente daquela janela todos os dias, no mesmo horário, na mesma posição. Parecia que tava congelado, não movia nem um dedo. Estático. Apático. Não, não, às vezes arriscava um sorrisinho no canto da boca.
Segunda, Terça, Quarta, Quinta, Sexta. Dias em que eu via, da minha janela, aquele menininho ali. No Sábado era diferente. Até no horário. Vinha mais cedo. Trazia um amigo às vezes. E ali ficavam, estáticos. Um cutucava o outro querendo dizer algo. O outro mexia a cabeça. Sorriam.
Engraçado era no Domingo. No Domingo ele vinha só. Mas trazia um livro. Veja bem, pensei, se bem não se mexe, como diabos vai ler as páginas de um livro?! No Domingo ele aparecia mais cedo do que no Sábado. Provavelmente depois do almoço escapava sorrateiro enquanto os pais iam descansar. Talvez nem tivesse pais. Talvez nem almoçara.
Fato é que, ele observava algo e eu o observava. Tudo assim, de longe. De relance. Especulativamente.
Uma tarde dessas, acordei, sem muita cerimônia fui até a varanda. De súbito me abaixei com o que vi. Olha lá ele outra vez. Mas tão cedo. Que dia é hoje?!Domingo?! Agachada, quase que engatinhando, cheguei à cozinha. Abri a janelinha lateral, ali parecia seguro. Ele não me via. Passei o fim da tarde todo ali. Olhando pra ele. E ele olhando o horizonte.
Dia desses estava comprando frutas. Perto de casa mesmo. De certo, andava pela rua como uma desvairada. Derrubei um dos cestos de morangas do quitandeiro. Apanhei o que pude junto com ele. Pedi desculpas. Voltei ao curso normal rumo ao meu prédio. Parei. Olhei em volta. Sentia-me observada. Retomei a andar. Parei de novo. Olhei discretamente pra trás. O quitandeiro estava com algum cliente. Não, não era o quitandeiro. Voltei a caminhar. Caminhava rápido e mais rápido. Corri. Parei. Perguntei-me porque corria e, sobretudo, de quem. Sem respostas. O prédio já se aproximava. Podia ver de longe a minha janela da cozinha. Estava entreaberta. Tremi. Gelei. Pensei em voltar. Busquei aparato numa sobra de parede de uma casa abandonada. Talvez dali eu pudesse me sentir conservada. Procurei angustiada pela figura daquele garoto franzino sentado a frente da minha varanda. Não estava lá. Será que...não, não... era só um garotinho.
Passei uns 30 minutos ali. Escondida. Fitava com receio a janela da cozinha. Senti-me pela primeira vez invadida. Senti-me nua sem movimentos meus, só meus.
Pensei em ligar pra polícia. Pensei em apontar pra janela e rir. Talvez isso desarmasse a convicção do observador anônimo. Pensei em gritar pro nada. Pensei em ameaçar contar a mãe do garotinho. Pensei. Nada fiz. Sentei no chão. Comi umas frutas. Achei um livro na bolsa. Peguei-o.
Quando a tarde caiu, olhei pra mim mesma. Peguei as chaves no bolso e subi. Sem medo. Tomada por uma curiosidade infinita. Abri a porta. Ri. Porque pensei em dizer algo pra alguém que estivesse ali. Moro só há alguns anos. A gente sente essa necessidade as vezes. Mas, nada disse. Engraçado é que não pensei em ir logo na cozinha. Não, não. Era tarde já, talvez o garotinho pudesse já estar sentado ali, a espreitar a vida.
Ele não estava ali. Esperei ser cedo demais para a sua chegada. Sentei-me no sofá. Não queria mais ir à cozinha. Levantava de tempos em tempos pra ter certeza de que ele ainda não havia chegado. E foi assim durante dias. Semanas. Meses. Anos.
E hoje cá estou eu, sentada nesse sofá velho, empoeirado e sem graça. Não sei até que ponto eu fui espectador ou se fui observada. Não sei até onde a minha vida foi roubada. Nem sei até onde posso ser analisada.
E A janela da cozinha?!
-- Mandei tapar.

Zorieuq De.

Um comentário:

Anônimo disse...

Eis que eu sou fã desta menina... Narrativa forte, bonita, densa. A complexidade do simples... Tô anotando! ô lições!!!

Beijo, Ana! Lu